A informação veiculada em quadros e gráficos estatísticos é imensa e multivariada. Geralmente, fazem-se análises particulares segundo o ângulo que ao observador interessa mais, que noutros momentos, pode ser muito diferente. Assim, creio que o disponibilizarem-se quadros e gráficos estatísticos aos estudiosos é muito importante e que, num blogue, permite que se faça debate das interpretações e análises que cada observador faz dos dados apresentados.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Alguns apontamentos sobre eleições "republicanas"

via Centenário da República by noreply@blogger.com (Luís Bonifácio) on 10/1/08
Perante este texto de Artur Mendonça, um dos escribas do Almanaque republicano, o qual critica, no bom sentido do termo diga-se, a iniciativa da nossa comemoração do Centenário da republica

Sobre o texto de Artur Mendonça já respondi genericamente na sua caixa de comentários. No entanto, e para mais alicerçar a nossa posição resolvi abrir as "hostilidades" com algum material que me encontro a preparar para a Plataforma.

Diz Artur Mendonça que […] Na Monarquia já existiam eleições, mas também se sabe que elas de livres tinham só o nome. Mais, os monarcas tiveram o cuidado de votar leis que podiam impedir o progresso eleitoral dos republicanos criando círculos eleitorais mais amplos nas regiões urbanas de Lisboa e do Porto, onde tradicionalmente havia maior votação no Partido Republicano, para conseguirem realizar mais facilmente as famosas chapeladas (colocação de votos nas urnas)[…].
Nenhum de nós contesta esta afirmação, o que nós contestamos é que a partir de 1910, a situação alterou-se para … pior.
A legitimidade das eleições republicanas foi durante todo o período da 1ª republica ainda menor que na Monarquia Constitucional.
Este facto, vai fazer com que mais de 90% da população portuguesa esteja de facto fora do sistema de decisão, fazendo com que o regime ficasse completamente à mercê de golpes de Estado. Para a grande maioria da população portuguesa antes de 1926, ter um governo eleito ou ter um governo de ditadura era exactamente a mesma coisa, nenhum dos dois lhes pedia a opinião. Assim que uma ditadura esfriou os ânimos e sossegou o país, ficou calmamente no poder, durante 48 anos até cair, quase por acidente, de pura velhice.
O gráfico seguinte (ainda incompleto) representa o número de eleitores e votantes em todas as eleições desde 1834 até 1925. Os dados foram retirados da página da Biblioteca Nacional "Materiais para a história eleitoral e parlamentar 1820-1926"
Neste sítio não se apresentam explicações para a ausência do número de votantes em várias eleições.

A risca preta representa o início do período republicano. Se descontarmos o ano de 1918, eleição directa de Sidónio Pais, que a historiografia republicana oficial não considera como eleição mas plebiscito, vemos que durante o período republicano, com excepção de 1911, o número de Portugueses com direito a voto esteve ao nível dos últimos anos da monarquia e similar aos anos 1870 quando a população era 50 % inferior.
Longe ficaram os tempos de 1891-1895 quando 90% da população Portuguesa masculina maior de 21 anos (Então o universo legal de votantes) tinha direito a voto.
Mas se verificarmos o número de votantes, as diferenças ainda são mais gritantes. Nunca em 16 anos de república o número de votantes foi superior ao número de votantes do tempo da Monarquia Constitucional.
Quanto às chapeladas republicanas, que a história oficial afirma nunca terem existido aqui deixo dois exemplos:

Carta de Afonso Costa (então primeiro-ministro) a aconselhar um presidente de câmara, a dois dias de ser nomeado governador-civil que "não se perdesse por causas meramente formais um só dos nossos votos".

A segunda missiva vem de Luís Filipe Rodrigues, notário de Monção, aconselhando o meu bisavô, Raimundo Meira, então candidato a Senador, a enviar 800 listas (boletins de votos) para entrarem nas urnas de modo a garantir a sua eleição.

Que coisas destas aconteceram na Monarquia, sim, ninguém duvida disso. Mas o que a história oficial afirma é que entre 1910 e 1926 as eleições foram livres, justas, o que está tão longe da realidade quanto a história da Carochinha.

Nota: Este apontamento faz parte de um trabalho mais alargado sobre eleições no regime republicano a publicar na Plataforma

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Anti-Clausewitz ou o elogio da derrota

via Caminhos da Memória by Caminhos da Memória on 9/16/08

Um texto de José Pedro Barreto (*)
Adaptação de texto original publicado na revista Egoísta de 9 de Dezembro de 2001

O filme passou em Portugal com o título de 0 Rato Que Ruge. Era uma daquelas deliciosas comédias inglesas dos anos 50, com o impagável Peter Sellers. Contava a história de um minúsculo principado imaginário da Europa, que vivia confortavelmente da exportação da sua única riqueza, o vinho. Até que um dia deu uma qualquer maleita nas videiras e tudo se perdeu. Ante a perspectiva de uma completa bancarrota, alguém teve uma ideia genial: que tal declarar guerra aos Estados Unidos? É que, sendo a derrota óbvia, os americanos tomariam conta dos vencidos e haviam de ajudá-los copiosamente, com programas à maneira do Plano Marshall. 0 futuro ficaria garantido. Dito e feito: o governo do principado compra passagens num cargueiro rumo a Nova Iorque e nele envia a fina flor das suas Forças Armadas - um punhado de valentes munidos de lanças, cotas de malha e ordens para se renderem ao primeiro cidadão que encontrassem, mal invadissem a América.

Mas, no dia da chegada, um exercício de alarme em Nova Iorque levara toda a gente para os abrigos antinucleares. Quando a valorosa força desembarca encontra a cidade deserta - aparentemente porque os americanos fugiram espavoridos. 0 que a leva a conceber a perspectiva acabrunhante de estar a ganhar a guerra. O resto do filme é uma sucessão de coincidências hilariantes - incluindo a posse inadvertida de uma bomba atómica verdadeira pelos invasores - que tornam cada vez mais difícil atingir o objectivo da operação e acentuam os riscos de uma desastrosa vitória militar sobre os Estados Unidos.

O filme é, claro, uma paródia aos temas da época. Mas o enredo não é tão disparatado como parece. A guerra é muitas vezes a solução para os problemas de um país, e o senso comum diz-nos que o resultado ideal de uma guerra é a vitória para as nossas cores. Nada mais errado. A vitória conforta a alma e os anseios de glória - mas uma guerra só vale mesmo a pena se for perdida. A História está recheada de exemplos de vencidos que, por o serem, ficam em melhor estado do que antes - e até, por vezes, melhor que os vencedores; e também de vencedores arruinados pelas suas vitórias. Por isso, o objectivo supremo de toda a estratégia e de toda a política externa que se prezem deveria ser a obtenção de um sólido, completo e fecundo desastre militar.

A vitória é, o mais das vezes, um fardo muito difícil de suportar e uma consequência caríssima para quem a obtém, já que este tem de assumir todas as responsabilidades e encarregar-se do vencido, manter custosos dispositivos de ocupação e policiamento do seu território, alimentá-lo, ajudá-lo a reerguer-se. A derrota é o fim dos problemas e das obrigações, é a simpatia, a compreensão e a piedade gerais, é a protecção pelas leis internacionais e os apoios de toda a espécie.

Veja-se o caso dos grandes vencidos da II Guerra Mundial, Japão e Alemanha. Ambos tiveram o cuidado de arrastar os Estados Unidos para o conflito, o que seria estúpido e tecnicamente evitável se o seu objective fosse ganhá-lo. Poucos anos depois da derrota, lançavam-se imparavelmente a caminho da prosperidade, e hoje são das primeiras potências económicas do planeta, face ao continuado declínio dos vencedores Grã-Bretanha e França. A Itália, estouvadamente, ainda tentou nos últimos momentos passar para o lado dos vencedores, mas conseguiu ainda obter muitos dos benefícios da derrota.

O caso japonês é paradigmático. Antes da guerra, o Japão era uma mistura de sociedade feudal e economia moderna, um monstro que se devoraria a si próprio se tivesse ganho. Derrotado, foi tomado por conta dos Estados Unidos e proibido de voltar a fazer a guerra, o que lhe valeu uma fortuna. Parte importante da força económica japonesa ficou a dever-se ao dinheiro que poupou num exército.

O caso alemão não é muito diferente. Já no final da I Guerra os Aliados cometeram o disparate de impôr uma derrota à Alemanha, limitando-lhe a capacidade militar e exigindo-lhe pesadas reparações. A exigência de cumprir os pagamentos mobilizou a indústria alemã, e arruinou as dos aliados - sobretudo, a da França, inundada de concorrência barata. Mas a derrota fora imposta por um armistício, e não por um desastre militar. Era preciso, de uma vez por todas, matar o monstro sedento da vã glória de ganhar. Por isso a Alemanha teve o tacto de provocar outra guerra que a arrastasse para a catástrofe total.

«Atribui tanta importância a ganhar guerras! 0 verdadeiro truque consiste em perdê-las, em saber quais se podem perder», diz um personagem (italiano) de Joseph Heller em Catch 22.

«A Itália tem estado a perder guerras ao longo dos séculos e, apesar disso, veja como se aguenta maravilhosamente. A França ganha-as e mantém-se em crise permanente. A Alemanha perde-as e prospera. Repare na nossa história recente. A Itália ganhou uma guerra na Etiópia e não tardou a embrenhar-se em problemas graves. A vitória incutiu-nos complexos de grandeza insensatos, o que nos entusiasmou a provocar uma guerra mundial que não tínhamos a mínima hipótese de vencer. Agora que voltamos a perder, tudo se encaminha pelo melhor e acabaremos de novo na mó de cima, se conseguirmos ser derrotados.»

O historiador militar B.H. Liddell Hart faz notar que

«a História mostra que as vantagens de uma vitória militar não são equivalentes aos que se obtêm pela política. Mas, sendo os teóricos que reflectiram sobre o fenómeno da guerra na sua maior parte militares de carreira, resultou daí uma tendência natural para confundir o objectivo fundamental da nação com o dos militares» (Strategy: The Indirect Approach).

O problema está, portanto, em convencer os profissionais treinados para a vitória de que esta não é necessariamente o melhor resultado para a nação.

Pelo contrário. Da Antiguidade aos nossos dias, as virtudes do desaire na vida dos povos estão bem ilustradas. Já Horácio cantava os gregos submetidos que «fizeram um escravo do seu conquistador romano». Aos que o felicitavam pela sua vitória contra os romanos, o rei Pirro respondia: «Sim, mas se obtivermos outra vitória, seremos destruídos!». Não há povo mais vencido do que os judeus, que se fortaleceram de cativeiro em cativeiro, de pogrom em pogrom, sobrevivendo a todos os impérios que os perseguiram até conseguirem um estado pago pelo Tesouro dos Estados Unidos. 0 problema foi quando começaram a ganhar guerras, a conquistar territórios. Hoje, perante a antipatia de boa parte do mundo, sofrem cada vez mais sob o peso das suas vitórias.

Os vietnamitas ganharam a guerra com os Estados Unidos. Mas ninguém dirá que ficaram melhor do que os americanos. 0 mesmo aconteceu nas guerras que Portugal travou este século (e perdeu) nos territórios africanos. A derrota abriu-nos o caminho da democracia, da integração europeia e da torneira comunitária, enquanto a vitória atirava Angola, Guiné e Moçambique para a miséria e o caos.

Mesmo do ponto de vista puramente militar, a vitória é muitas vezes mais custosa do que a derrota. Os vietnamitas tiveram perdas muitíssimo superiores às dos americanos. Já os franceses tinham sido batidos com menos baixas do que o Vietminh, e os movimentos de libertação africanos sofreram mais mortos do que os portugueses.

Em muitas das grandes batalhas da História, o maior número de baixas coube aos vencedores - pelo menos no que respeita a mortos. Um bom exemplo é o das guerras napoleónicas: entre 1807 e 1913, Napoleão travou oito batalhas vitoriosas e, em sete delas, teve mais mortos do que o inimigo, segundo as estatísticas oficiais. Numa delas (Bantzen) teve praticamente o dobro - 21 mil contra 11 mil. Só na primeira (Eylau) teve menos. Porém, na sua primeira derrota (Leipzig), perdeu 50 mil homens, e os inimigos 75 mil, tendência que se manteve até Waterloo.

A URSS reivindicou para si a glória de ter ganho a II Guerra, mas sofreu 20 milhões de mortos - muitos mais do que a Alemanha vencida. Em números globais, os Aliados tiveram oficialmente 36 236 276 mortos, enquanto o Eixo sofreu 14 500 000. Na I Guerra, a situação fôra semelhante: o conjunto dos países vencedores sofreu 4 milhões e 800 mil mortos, contra 2 milhões e 650 mil dos vencidos Alemanha, Áustria e Turquia.

Clausewitz definiu a guerra como «um acto de violência destinado a obrigar o adversário a executar a nossa vontade». No fundo, a definição permanece válida, se a nossa vontade for a de, inteligentemente, a perdermos.

(*) Biografia de José Pedro Barreto